Recorrências na ficção de Lya Luft


Como os romances de Lya Luft envolvem, em sua maioria, dramas familiares, então a casa como obra arquitetônica merece destaque. O investimento que a escritora faz nas formas arquitetônicas não se dá apenas no plano metafórico. A relação entre literatura e arquitetura afina-se perfeitamente com uma das modalidades das "práticas da memória feminina" (Gens, 2003) que consiste em escrever o mundo privado. Seu universo é o da condição humana

Lya Luft não apresenta a casa apenas como espaço de acolhimento, ou um local no que usamos para dormir, comer, ou para estarmos abrigados do frio e do vento, mas como um espaço profundamente totalizado, que abrange uma dimensão da vida social permeada de valores e de realidades diversas. Não se trata de um lugar apenas físico, mas de um lugar moral.

A casa, nas obras analisadas, ao contrário, desponta fracionada e, então surgem quartos, varandas, cozinha, salas e escadas, como se estivessem desligados do conjunto espacial a que pertencem. O espaço evoca não só a idéia de ruína como também elabora um espaço doméstico que adquire feição de "território minado", ou de palco de terríveis vivências. Em As Parceiras, por exemplo, a avó louca confina-se no sótão, "chamavam-no de sótão a esse quarto do terceiro piso do casarão, com um banheiro e uma sacada" (AP, p.12), de uma casa de veraneio: "Subia até lá sempre que podia, esquivava-se do marido, dos parentes, das visitas". (AP, p. 15)

O sótão era um espaço "desprendido" do resto do casarão, era à "luz" contra a "sombra": "... quando subíamos a escada em caracol, lembro o contraste entre a sombra e a claridade do quarto, onde tudo era branco..." (AS, p 12)

Dos espaços

As narradoras vagam por sótãos e porões em busca do passado, enfrentando portas fechadas que represam segredos e membros da família. Relações incestuosas, doenças, traições, estupro e aposentos misteriosos vão sendo exibidos constituindo autênticos arquivos da violência doméstica em seus mais variados aspectos.

Reduto do esquecimento

Em Exílio, na Casa Vermelha, em cada compartimento da pensão guarda segredos e mistérios com os diversos problemas que carregam as personagens "exiladas" da sociedade. Cada mulher que ali habita toma o quarto como refúgio da vida, onde elas podem se esquivar da vida. (Texto I)

A sala de jantar, outro espaço, onde todas essas "exiladas" se encontram e compartilham suas pobres vidas, é um local de encontro e "trocas" de olhares, de sentimentos, de compaixão.(Texto II)

No livro A sentinela, O escritório do pai da protagonista, em sua infância, parecia uma espécie de refúgio: "Muitas vezes eu nem virava as folhas apenas ficava ali, segura, tranqüila, sentindo o cheiro das poltronas de couro, dos livros, da água-de-colônia."(AS, p.67).

Segundo Gens (2003:3): (Texto III)

Pode-se concluir que, os romances de Lya Luft, na "qualidade de sótão ou porão" (Gens, 2003), expõem vestígios, histórias familiares, memórias de cômodos e espaços que, funcionam como relatos das relações cruéis cometidas dentro do chamado "lar doce lar".

A morte

O homem vive em constante negação à passagem do tempo, que não pode ser recuperado, e, muitas vezes, deixa de lado o sabor de viver a vida. Fica preso ao que aconteceu, memórias e lembranças, ou ao que pode acontecer como consequências dos seus atos.

A sociedade ocidental encara a morte como algo indesejado, tolerável apenas quando o indivíduo já viveu e produziu o bastante para poder morrer. Hoje, sabemos que o poder do homem sobre a morte aumentou. Através das conquistas da medicina, a morte foi definida como inimiga a ser derrotada. O homem, sabendo que não pode fugir do seu destino, tenta driblá-lo como pode. Ninguém aceita o fim da vida forma natural, é difícil superar a perda de uma pessoa da família, amigo, ou qualquer ente querido.

Para Heidgger ( apud BRANDÃO, 1955): (Texto IV)

Núcleo temático

Nas narrativas de Lya Luft encontramos a temática da morte quando as personagens femininas convivem com a perda de uma pessoa querida, a morte "interior", o suicídio, a morte biológica e a morte em vida, como, por exemplo, a invalidez. A morte aparece como elemento determinador das atitudes das personagens, principalmente quando desequilibra emocionalmente a família, com a perda dos pais, de irmãos, de filhos, enfim.

Entretanto, a morte representada pelo inconsciente não coincide com a morte biológica, sempre impensada e impossível de ser desejada pelo sujeito. O texto Luftiano focaliza o percurso existencial de personagens femininas tentando se autodefinir em meio a recordações às vezes amargas, temores, perdas irreparáveis, fantasmas pairando sobre o convívio familiar. Na literatura existe uma fantasia que reaparece com diversas aparências, que nem sempre é fácil de se identificar, mas é reincidente: a amada morta, a mulher meio-morta, meio-viva, bem como a morte-que-não-morre.

Segundo Hélène Cixous (apud BRANDÃO, 1955:27): (Texto V) Lya Luft serve-se de símbolos recorrentes (árvores, noite, verme, anão) que possuem em sua carga semântica uma duplicidade de sentidos, configurando, sempre, a eterna contradição humana, "a luta entre Eros e Tanatos" (Brandão, 1955). A linguagem simbólica torna sua narrativa universal e perpassa toda a obra, e a morte, encarada sob o prisma mitológico, torna-se uma alegoria.

RACHEL PINHEIRO BARBOSA
COLABORADORA*

* Graduação em Letras na Unifor

Frase

A família não aparece como um simples fenômeno natural. Ela é uma instituição social variando através da História e apresentando até formas e finalidades diversas numa época e lugar, conforme o grupo social que esteja sendo observado"

DANDA PRADO
Ensaísta

Trechos

TEXTO I

Fim de tarde: volto do trabalho a essa hora. Fico no quarto, e a mesma inquietação rondando, o coração alerta. O que espero? Quem deveria chegar?"(Ex, p.112)

TEXTO II

" O salão das refeições é habitualmente tenebroso (...) No fundo do salão, o soturno Enfermeiro palitava os dentes (...) A Velha mais sonhava do que comia: pelas maneiras, via-se que fora uma dama. As Moças beliscavam sua sobremesa entre longos silêncios ..." (Ex, p.40)

TEXTO III

um exame mais acurado do método de criação de Lya Luft revela com clareza que nele se encontra uma estética das ruínas. Pedaços, resíduos, "farrapos de frases" e fiapos do passado despontam reunidos, formando um verdadeiro arquivo do inconfessável e do mantido a sete chaves, o que faz com que os textos dos romances convertam-se em narrativas-porão ou narrativas-sótão.

TEXTO IV

a morte é uma possibilidade que está presente, determinando a vida desde o nascimento; é a possibilidade extrema que engloba e exclui todas as demais (...) é intransferível, pois nenhum homem pode morrer no lugar de outro, sendo assim insuperável, certa e, incerta quanto ao momento de seu advento.

TEXTO V

A morte não tem uma figura na vida. Nosso inconsciente não tem lugar para a representação de nossa mortalidade. Impossível representação, a morte é aquilo que imita, por esta impossibilidade mesmo uma realidade de morte. Ela vai mais longe. Significante sem significado. Segredo absoluto, novo de forma absoluta, que deveria permanecer escondido, pois se manifesta a mim, é porque estou morto: só os mortos conhecem o segredo da morte. A morte nos conhecerá; nós não a conheceremos.

Divulgando uma Ótima banda do Ceará, Mafalda Morfina...